Primeira entrada em um diário (06.10.2006)

Hoje me dei conta de algo que merece ser nomeado, mais por prudência do que por ciência, e por isso mesmo penso saber que, finda a tentativa, nada terá sido efetivamente nomeado.

 

O dia, como os tantos anteriores (incontáveis?), transcorreu vagaroso, e, como sempre, a sucessão de ônibus seguiu rigorosamente seu ritmo usual. Passaram pessoas, um ou outro cachorro, talvez um gato. Senti como sempre um pouco de frio – não o suficiente para me fazer subir num ônibus ou entrar na padaria –, como sempre. Não senti fome novamente, e isso ainda me surpreende. Tenho cinco pães e meio e um pacote branco que creio que contém algum tipo de doce, mas já não me lembro direito. Além disso, tenho uma embalagem vazia de alguma comida, algum tipo de salgado, talvez, que, por pura inferência, penso ter comido no primeiro dia. Pela lógica, o doce já estaria estragado, mas como não sinto fome, não durmo e nunca sinto frio suficiente para decidir sair – não acho que isso seja de fato possível –, a deterioração do doce me parece improvável, a não ser que ele esteja submetido a leis outras que não aquelas a que eu estou submetida. No céu como na terra, no entanto, e penso que o doce está intacto. Talvez se eu tivesse uma faca…

 

No primeiro dia, maldisse meu esquecimento. Estava um pouco frio e a princípio me senti ligeiramente incomodada etc. À medida que o tempo foi passando, no entanto, embora nada ou muito pouco tenha mudado – os transeuntes me cumprimentam como se a situação fosse temporária –, meu cárcere em liberdade tem me proporcionado uma espécie muito peculiar de entendimento (é essa a palavra?) sobre determinadas coisas – e, claro, também uma série de surpresas monótonas, por assim dizer: de constatações a médio ou longo prazo que não fazem sentido dentro de nenhuma lógica que eu conheça. Não durmo, não como, e o degrau da soleira é inconcebivelmente confortável, igualmente confortável dia após dia.

 

Hoje, no entanto, algo mudou: um entregador de esfihas estacionou a moto logo em frente e tocou a campainha ao meu lado. Disse-lhe que o endereço estava errado e que não havia ninguém na casa (se houvesse, pensei sem muita convicção, eu já haveria entrado). Indiquei minuciosamente o local correto e ele se foi. Só então se deu a coisa.

 

Há alguém na casa. Não me dei subitamente conta disso: eu já sabia. Desde sempre. Muitas vezes encostei a cabeça na porta e procurei divisar, por entre os ruídos dos carros e dos ônibus na rua, algum som, indício de ocupação humana, vindo do interior da casa. Nunca ouvi nada conclusivo, mas sempre soube que o silêncio era um silêncio cúmplice: alguém lá dentro espera também, também encarcerado, e nos compreendemos no nosso silêncio mútuo. Mesmo o fato desta pessoa não ter vindo atender o chamado do entregador equivocado era claramente uma espécie de piscadela. Alguém está ali, alguém que também me espreita: sinto algo de vital saindo das frestas.

 

Pergunto-me o que faria caso um dia escutasse algum som conclusivo, como batidas com um intuito claro de comunicação. Bateria em resposta? Pediria desesperada para que abrisse a porta? Olharia por uma das frestas tentando divisar no escuro alguma movimentação humana? Provavelmente não. Esperaria, talvez, até que fosse retomada nossa forma sutil de comunicação. Entrar na casa seria muito pouco natural.

 

Lembro-me sempre de um já velho conto argentino (refiro-me agora, não para minha surpresa, à literatura argentina como alguém que nunca tivesse esquecido a chave talvez se referisse à russa; contos tradicionais, de fadas) e me sinto um pouco como uma Irene muito às avessas. Temos a mesma certeza: há alguém do outro lado. Mas Irene e seu irmão fogem, trancam, enclausuram o horror: no meu caso, eu estou presa. Não me cabe decidir sobre a abertura da porta. Mas há alguém do outro lado, e talvez por isso o frio nunca etc. e o doce etc.

 

Mas me ocorreu: se eu, e não o entregador de esfihas, tivesse tocado a campainha, talvez ela (ele?) viesse. A porta se abriria e eu, embora não entrasse, creio, estaria livre. Ou, por outra, como está escrito em todas as gramáticas e constituições, ninguém viesse e de fato não houvesse ninguém do outro lado. E aí me restaria ir embora, ou comer pão puro, ou abrir o doce mesmo sem faca. Estaria, também, livre. Mas há.

 

A necessidade de confirmação, no entanto, me impelia, pois era uma resolução e uma resolução bem-vinda apesar de eu não sentir fome etc. Levantei-me, encostei o dedo no botão, mas não o pressionei de imediato. Deixei-o estar apenas apoiado e senti que aquilo de vital que as frestas exalam se intensificava enormemente. Vi – vi – a pessoa atrás da porta, espreitando-me de uma fresta ou pelo olho-mágico, esperando apenas que eu aumentasse ligeiramente a pressão para… matar-me, tive certeza. Vi o punhal. Vi a tensão nos músculos. Vi olhos vidrados, jubilosos da realização heróica prestes a se consumar. Vi seu regozijo, intensificado pela longa espera.

 

Então compreendi. Afastei-me, a tensão voltou para o nível normal e os ônibus, que só haviam parado de passar talvez na minha – e na sua? – compreensão, retomaram sua marcha.

 

Agora chove. Mas não o suficiente etc.

2 Comments

Filed under Contos

O Encontro (03.02.2007)

Sofrer é ver-se limitado depois de extenuar-se tentando vencer a causa daquilo que comumente se chama sofrimento. As pessoas chamam sofrimento o ato de estarem voluntariamente (por omissão) presas a uma limitação. Os ditos sofrimentos são transponíveis, e sua transposição só depende de uma necessidade real de liberdade que arrebata e não dá margem a preguiças ou justificativas. Deste dito sofrimento, só sofrem os que não anseiam verdadeiramente por liberdade, e estes são muitos. Os que sofrem genuinamente, os que sofrem o sofrimento autêntico, sofrem pela única causa justa (ou pela única causa autêntica, uma vez que a justiça pode encarcerar): a liberdade. Ser louco é estar preso, e quase todos estamos. A pior das loucuras é não buscar instintivamente a liberdade. Não a que termina onde começa a do outro (distância, medida e limite), mas a que pode ser vivida por todos para todos os lados e de todas as formas sem provocar prejuízos porque só pode ser vivida coletivamente; não também a liberdade egoísta na qual me imagino livre para matar, desconsiderar e menosprezar e assim subir degraus de pedra dentro do meu aquário pessoal esperando ver no alto a felicidade, a sabedoria, a auto-afirmação ou qualquer outra invenção, só para constatar que, se a subida tiver fim, ao topo não haverá nada além de loucura, loucura e solidão. A liberdade de que falo é a que em frestas da nossa realidade irrompe e exige de nós certas coisas que não faríamos normalmente. Neste sentido ser verdadeiramente livre é submeter-se a algo que nos ultrapassa (ou ultrapassa, intransitivo). Só somos verdadeiramente livres nos momentos em que fazemos algo por nos vermos, impotentes, impelidos a fazê-lo, a fazer algo que jamais faríamos em sã consciência. Destes lampejos de liberdade nascem amores e obras de arte; finda a noite ou emoldurada a obra, cá estamos de novo terrivelmente atados e sofrendo o falso sofrimento, inconscientemente ávidos da próxima fresta de liberdade.

Basta-nos?

***

Eu terminara aí meu malabarismo filosófico e dirigia a Heitor um olhar misto de indagação e chiste. O olhar que ele devolvia me divertia. Gosto de Heitor porque ele jamais me intimida; me admira e ouve calado, não tem crítica, o que faz dele um ótimo e seguro depósito para minhas verborragias. Eu poderia ter continuado: não, não nos basta, mas o limite máximo da hipocrisia seria quebrado e um pouco de dignidade precisa ser mantida; além disso, a pergunta quase retórica certamente o levaria a esta conclusão, que talvez em suas entranhas não fosse tanto uma hipocrisia quanto nas minhas. Porque veja, não chega a ser uma mentira, mas de que vale uma verdade quando ela não provoca uma ação? A princípio me desconcertava perceber que conclusões tão contundentes não provocavam automaticamente uma mudança de hábitos, mas aos poucos me acostumei a dizer que a única busca digna é a por liberdade e seguir buscando reconhecimento, conforto, café. Parecer elevado, quase abnegado, ascético, ao afirmar enfaticamente minhas conclusões: que outro embasamento pode haver? Explicações só são válidas se nos fazem mais livres, toda busca que não por liberdade será enterrada com aquele que nela se empenhou. Dizia eu, como que num púlpito ou palanque. Admiravam meu comprometimento, meu desapego. Consegui muitas mulheres assim. Inclusive uma freira.

O que Heitor, as mulheres e os outros não vêem é que nos acostumamos tanto a não ser livres que só do interior do nosso cárcere fomos capazes de detectar a prisão. E, como se sabe, não basta saber da existência das grades, apalpá-las longamente, pintá-las de laranja. Não nos livra. Mesmo os que constatam que o que perdemos foi afinal a liberdade e que buscá-la é a única forma de realmente viver não são capazes de seguir suas próprias advertências. Não porque não tenham meios: todos temos. Mas já não temos vontade. Tanto nosso cárcere embotou nossa vontade que já não temos impulso para romper grades. O impulso, aquilo que podemos e sabemos que devemos buscar, depende de si mesmo para ser encontrado. E, como não há, não há.

Então talvez eu seja menos hipócrita do que Heitor. Ou menos burro. Ele ou não é inteligente o suficiente para chegar a essa conclusão cabal ou não tem a coragem de admiti-la para si e também publicamente. Mas minha verborragia deteve-se no “Basta-nos?”. Até aí soei como um herói, talvez o último. Das implicações posteriores nada contei a Heitor. Ante a frase final, ele me lançou um movimento de pescoço e tomou um gole do café sem tirar os olhos de mim – respeito, admiração, talvez alguma subordinação? Ou quem sabe eu lhe parecia ser uma aberração enjaulada?

***

– Pensei naquilo que você disse sobre a liberdade.
– Hm.
– Eu conheci uma mulher.
– E?
– Não trocamos uma palavra, mas num certo momento olhei para seu corpo sem distinguir olhos, seios, boca, e houve um impulso.
– Sempre há, Heitor. É a coisa mais antiga do mundo.
– Não! Quero dizer, é a coisa mais antiga do mundo, mas só quando é assim, de verdade. Sem licença poética: o seu corpo era uno, o impulso levou minha mão até ele, o toque borrou algum limite e isso era a liberdade.
– Como ela chama?
– Não sei.
– Hm.
– Não importa.
– Ia falar: “Peça fulana em casamento.”
– Não é assim.
– Se essa mulher lhe deu a liberdade, Heitor! É a única busca digna, não é? Não é o que você quer? Ou é pavor de monogamia?
– Não é assim. Não combinamos os encontros: vimos-nos fortuitamente, duas vezes. Na primeira eu a segui sem saber porquê mas com a certeza do seu consentimento. Passamos a noite juntos, num hotel; na manhã seguinte saí enquanto dormia, sem fazer barulho, ainda com a impressão da liberdade que havia se configurado. Tive a impressão de que, caso a acordasse, a experiência se desvalidaria. Pensei que não mais a veria. No entanto, nos cruzamos novamente; eu a avistei de longe, na rua, e percebi que ela também havia me visto. Andamos sem afetação um em direção ao outro e, no mesmo instante, paramos, com os rostos quase colados. Desta vez ela me seguiu, mas levá-la até minha casa parecia um erro, um solvente. Fomos para outro hotel e novamente tive este contato com a liberdade de que falo. Percebe? Agora sinto que é possível que nos vejamos novamente sob circunstâncias parecidas, e esta esperança, ainda que não se concretize, é melhor do que qualquer busca ativa ou tentativa de oficialização. Seria um cárcere, e todo cárcere dilui – será que a liberdade não é a vida concentrada?
– Você é um romântico, Heitor.

***

Heitor provavelmente delira ou é muito ingênuo. Não me surpreenderia que esta mulher o procurasse para um terceiro encontro e lhe apresentasse uma conta pelos serviços prestados. Pobre Heitor; se o que contou de fato se deu, ele decerto vê mais do que realmente há. Até que ponto a auto-sugestão pode influenciar um homem! Se não tivesse na mente tudo o que lhe disse, e que lhe pareceu tão belo (talvez uma saída, uma explicação), veria que esta Afrodite não pode existir. O cárcere é coletivo. Ela só pode ter motivos de dentro do cárcere. Dinheiro, sexo? Ou busca dentro do cárcere uma solução para sua solidão que consiste justamente em estar encarcerada? Neste caso, ambos se iludem na liberdade que momentaneamente alcançaram. Ela não se sustenta nesta prisão, porque aqui se busca a estabilidade e o conforto controle-remoto de ter tudo à mão. Eles hão de querer deixar de depender de encontros fortuitos para alcançar esta liberdade. E a partir do momento em que começarem a buscar-se mutuamente, ainda que apenas passando a vagar sem rumo por mais tempo, na esperança de um encontro, terão se trancado cada qual em sua cela e, por mais que de fato talvez se amem e não cheguem a contrair matrimônio ou mesmo a saber o nome um do outro, só poderão acenar por entre as grades e aí nada disso fará sentido. No fundo é um beco sem saída.

***

– Será que a liberdade não é a vida concentrada?

Já pensei que a liberdade era a morte. Se nesta vida estamos condenados à solitária, é apenas lógico concluir que a antítese da vida é a antítese do cárcere: a morte é a liberdade. Por isso a afirmação de Heitor me pareceu a princípio tão absurda e romântica. Mas agora, que não consigo dormir pensando em Heitor e na liberdade, penso que não poderia fazer mais sentido: a morte é a vida concentrada. Convenhamos: estas coisas que discernimos e com as quais convivemos não merecem o título de vida. O escritório, fazer a cama, Coca-Cola… só chamamos a vida de vida porque a estes elementos somam-se outros que fazem com que não seja heresia dar ao conjunto o nome de vida. Mas é vida esparsa: a maioria dos elementos é banal e clara demais, pentear os cabelos, discutir idéias, fazer contas. Tudo muito fácil de ser manejado. A vida não valeria a pena se tudo estivesse assim Coca-Cola, sob nossa égide. Vivemos porque de tempos em tempos algo nos arrebata, algum milagre se dá, somos capazes de olhar para um gato e nos sentir irmanados. Às vezes no sexo não sabemos quais são os limites do nosso corpo. Às vezes uma paisagem deixa de ser tema para uma natureza-morta e se faz viva, em sua harmonia de movimentos e em sua coordenada placidez, e às vezes podemos senti-lo ainda que apenas por um momento. Sem isso, suicídio na certa. No entanto, nestes momentos de vida intensa já não somos indivíduos, sujeitos, eixos-do-mundo: a vida se intensifica à medida que nos apagamos. Apagar-se definitivamente é morrer. A vida intensa, que é a liberdade, é a morte.

***

– Vimo-nos novamente.
– Quem?
– Eu e ela.
– Ah.
– Do outro lado da cidade, em extremos opostos de um vagão de metrô. Nossos olhares se cruzaram e sem premeditar desci na estação seguinte. Ela fez o mesmo. Fomos novamente para um hotel, despimo-nos e adormecemos imediatamente um nos braços do outro. Sem sexo. Tive sonhos imagéticos, povoados por seres fantásticos. Quando acordei, ela já não estava lá.
– Você ainda vai me convencer de que não imagina esta mulher.
– Tenho certeza. É o que de mais real já vi.
– Os hotéis têm um papel importante nesta sua cruzada pela liberdade, hã, Heitor…?
– São terreno neutro e anônimo. Nenhuma particularidade pregada na parede, estendida no chão ou exposta em porta-retratos.
– Sei.
– … Acho que é isso que é amor.
– Encontros fortuitos com uma estranha em hotéis sujos.
– Não, essa vida concentrada. Essa liberdade é o amor.

***

Se é certo que todo ser humano busca o amor, então as esperanças não estão tão perdidas. Estamos todos engajados nesta busca digna pela liberdade. Mas se esta liberdade é, em última instância, a morte, que sentido faz permanecermos vivos? Se a morte é a vida concentrada, porque devemos nos contentar com os raros momentos dela em meio à prisão que é estar vivo? Talvez estar preso seja condição para vivenciar esta liberdade. Doses diárias e efêmeras da morte, que só se torna objetivo e prazer por contraste. Não fôssemos tão auto-centrados, tão racionais, tão solitários, de nada valeria o amor, essa liberdade. Não se trata de buscar a morte, querer a morte. Suicídio não muda nada. Já o amor, essa morte homeopática, é uma resistência, quase uma declaração, talvez a única rebeldia justificável. Manter-se voluntariamente encarcerado para poder tirar prazer dos raros momentos de liberdade que, não fosse o cárcere, seria contínua e portanto dissolução total, silêncio, escuridão, nada. Compreendo porque Heitor se mantém vivo. Quer esta mulher exista como ele relata, quer seja fruto de auto-sugestão, tornou-se sua porta para esta resistência final. Heitor não é, afinal, burro ou hipócrita. Talvez não tenha percorrido o caminho intelectual que leva a esta (quase) absurda constatação, mas ele já sabe (sente?) que este amor é necessário porque é uma investida contra o cárcere. Estar morto não mereceria adjetivos. Amar como forma de resistência é belo. E é também uma esperança, talvez a última, não sei de quê.

***

– Continuamos nos encontrando por obra do acaso. É sobrenatural. Fico com a impressão de que basta querer. Não como nos filmes de fadas: fechar os olhos e repetir o desejo… querer mesmo, sem que seja preciso pensar naquilo que se quer. É só quando nos encontramos que me dou conta, semiconsciente, do quanto desejava vê-la.
– Vou tentar nas horas vagas.
– Sei. Se quiser eu paro de falar. Não adianta querer diálogo e troca quando existe uma barreira de sarcasmo.
– Não me leve a sério, Heitor. Estou só brincando com você.
– Você acha que eu sou ingênuo.
– Não.
– E que a solução que eu encontrei para o seu problema do cárcere é insuficiente.
– Não! Heitor.
– E que a mulher é uma invenção.
– Heitor, não. Desculpe. Eu caçôo por hábito. É parte do meu cárcere. Eu acredito. Eu acredito.
– Eu quase não acredito.
– Como?
– Não me lembro da sua aparência. Às vezes penso estar ficando louco. Mas talvez a loucura seja uma forma de liberdade.
– …
– …
– Heitor, loucos somos os encarcerados. A sua loucura é certa.
– E se eu inventei esta mulher?
– A sua loucura é certa.

***

Caídas as máscaras, a verdade é que agora o invejo. Em alguma porção podre de mim, sinto-me roubado e traído. Não fosse minha verborragia sobre a liberdade, este processo ou coisa que o valha não teria se desencadeado em Heitor. É certo que ele encontrou o amor sem barreiras e a liberdade (temporários, pois é assim que os queremos, que precisamos deles)? Se sim, isso é dado a todos os homens? O que me impede de vagar sem buscar nada e conquistar sem palavras o amor, a liberdade, um pouco da morte que me livraria do cárcere de mim mesmo? Penso que duvido demais, embora agora acredite totalmente em Heitor. Esta dúvida talvez não seja dúvida: talvez seja a expressão racional de um desejo terrível.

***

– Diverti-me muito. Há muito tempo não tinha uma conversa tão séria com alguém, e ainda assim me diverti.

Marcela sorria e me dirigia um olhar semelhante ao que Heitor me dirigira após me ouvir falar sobre as mesmas coisas. A diferença é que Heitor estava do outro lado de uma mesa num café; os olhos de Marcela estavam a poucos centímetros dos meus, ela em frente à porta de sua casa e eu um degrau abaixo, após um longo jantar regado a vinho e à verborragia que sempre, sempre funciona. O prazer sempre renovado de parecer profundo e autêntico ainda que às custas de fazê-lo diante de um completo estranho. Marcela e eu havíamos nos conhecido poucas horas antes, fruto de uma abordagem calculada de minha parte, numa praça, ao pôr-do-sol.

Marcela já me beijava devotamente.

– Vem, entra.

Subi com ela, quase puxado por sua mão tão delicada e decidida, uma longa escadaria de madeira escura. No final do corredor, dobramos à direita e entramos em seu quarto. Cama milimetricamente arrumada, móveis coordenados, um perfume delicioso.

Marcela é linda. O cabelo longo de um castanho quase comestível brinca de esconder seu rosto, seus ombros, seu colo. Grandes olhos negros percorrem meu rosto, lábios finos e um pouco precipitados buscam os meus. Dedos longos terminam em unhas curtas e delicadas que ela desliza vagarosamente sobre minha pele. Marcela é linda e me envolve inexoravelmente na sua coreografia.

Deitamo-nos. Ela me posiciona, me beija ternamente, sorri, se posiciona e dá continuidade ao programa, maestrina virtuosa. A orquestra, boa orquestra, obedece. Fecho os olhos: some o quarto, estou em uma sala de concertos muito etérea. Marcela regendo como uma dançarina do ventre. Envolve-me, no compasso. Soam os metais, pianissimo. Lembro-me de Heitor, que adora concertos. Tchaikovsky. O ombro de Marcela cheira a canela e mel; envolvo sua cintura. Inveja, inveja de Heitor e de sua liberdade. Como pode, como pode ter gostado de concertos? Agora ouve e acompanha outro canto, sem partituras. Marcela, seus dedos longos envolvendo minha nuca, o corpo em arco: é linda, ótima, grande artífice. Entrego-me. Já Heitor se entrega à terra úmida, a um fruto misterioso, a um lago plácido. Soam os metais: mezzo-forte. Marcela e sua batuta; movimentos precisos. Penso, e recuso como um vômito: algum crítico diria que lhe falta alma. Ela soube até compassar sua respiração à minha. Seus lábios, quase colados aos meus, soltam ritmadamente um ar quente e úmido, canela e mel. Onde estará Heitor? Quero perguntar: como cheira a sua liberdade? Esta mulher, como cheira? Como respira? Como se chama? Marcela, soam os metais: forte. Não se apresse. Não preciso dizer-lhe: mestre na sua arte, Marcela. Movimentos suaves da batuta em sua mão. Um mover de olhos negros por trás do véu. Maestrina odalisca, Marcela, corpo úmido de suor, mãos firmes, os cabelos em meu rosto são uma tenda – canela e mel. Heitor! Como é a sua mulher? Que cheiro ela tem? Que tem ela que se faz porta para a liberdade, a morte? Como se chama? Marcela, hábil, hábil dançarina, é isso o amor? É decerto uma bela representação, que espetáculo, Marcela. Heitor, você tem que ver esta mulher, Heitor. Que cheiro tem? Soam os metais: fortissimo, já se avizinha o fim do concerto, como chama a sua mulher? Marcela, todo o corpo envolvido no movimento final, maestrina hábil, odalisca, artífice! Heitor, eu o invejo; que cheiro tem sua mulher? Como chama? Marcela, canela e mel.

***

– As coisas não são fáceis. Fui burro ao ser otimista e esperançoso.
– Que há?
– Não a vi mais. Lembro ocasionalmente do quanto quero vê-la, mas não a procuro. Sei que este mundo é fruto do meu desejo. Ela talvez também o fosse. Se não vem mais, sinal de que meu desejo enfraqueceu? Sei que a desejo, mas pouco ou nada vale saber desejar algo ou alguém. Só sei que não a tenho visto.
– A coincidência e o acaso não são regidos por leis estatísticas, Heitor. Foi suficientemente inacreditável que vocês tenham se encontrado tantas vezes. Não se sujeitar ao tempo do acaso, se é que você pretende esperar, seria colocar novos cadeados no cárcere.
– A questão não é essa. Sinto que algo não está certo. É claro que sob um ponto de vista lógico eu sei que não deveria esperar revê-la. Mas a sensação nada tem a ver com a demora, o calendário. Algo não está certo.
– Por que entramos aqui, Heitor?
– Não sei. Não sei. Rápido, essa escada lateral. Assim não nos vêem.
– Heitor, o que é isso, aonde vamos?
– Ali, ali, aquela porta à esquerda. Algo não está certo. Abra a porta, eu não posso.
– Precisamos sair daqui.
– Abra a porta, por favor, por favor. Está destrancada, eu sei.

***

Um quarto sujo de hotel, uma mulher estendida na cama, os cabelos castanhos bagunçados sobre seu rosto, ombros, colo. Braços e pernas como se dançasse, suave. Nos dedos finos terminando em unhas curtas, um revólver. Sob a cabeça, um travesseiro empapado de sangue. No ar, cheiro de canela e mel.

– Marcela!

Heitor, pálido:

– É ela.

Leave a comment

Filed under Contos

Uma Noite (3ª versão) (2002)

Subo as escadas de minha casa com um misto de alívio e pressa. Um espelho no corredor revela, de relance, minha imagem. Passo despercebido para mim mesmo. Finalmente as coisas deram certo na empresa, agora a situação vai melhorar, não vamos ter que vender a casa. No quarto, minha mulher pinta um quadro, um vaso azul começa a surgir por entre os borrões. O negócio com o seu Mário deu certo, querida, nossa vida vai mudar. O futuro do Júnior está garantido. Ela se levantou e me abraçou. Júnior estava deitado em seu bercinho. Entrei no banheiro para tomar banho, um banho demorado e merecido, cheiro de xampu no ar. Saio da ducha, olho no espelho e arranco um fio de cabelo branco que me aparece entre meus cabelos molhados. Não tenho mais preocupações. Saio do banheiro; minha esposa, sentada na cama, dá de mamar para minha filha. Onde está Júnior? Lá no quarto, jogando video-game. Abro o armário, abrem-se gavetas à minha frente, onde estão os pijamas? Ternos e gravatas impedem-me a visão, lá está ele, na última gaveta, o pijama. Visto o pijama e volto ao banheiro. O cheiro de xampu ainda paira no ar, penteio meus cabelos. Já não me preocupo em arrancar os fios brancos, são muitos, observo rugas começando a surgir. Passo desodorante e saio do banheiro. Ando pelo corredor, lá está o vaso azul que minha mulher pintou há algum tempo. Ele passa despercebido. E lá está minha mulher, no quarto da Júlia, colocando o pijama nela. Quem diria, já, já, vira uma mocinha, é o que minha esposa diz e eu furtivamente ouço. Meu filho está trancado no quarto e um som de guitarra atravessa as paredes. Ando até a sala, sento-me na minha poltrona favorita e pego o jornal do dia, algumas páginas depois minha esposa senta-se no sofá, perto de mim, e diz algo sobre como os meninos cresceram, que me interessa menos do que as notícias que leio. Minha filha passa fazendo barulho com os saltos das sandálias plataforma no chão e mascando chiclete, meu filho passa e pega a chave do seu carro dizendo que vai levar a irmã a algum lugar, danceteria, acho que ouvi. Minha esposa liga a televisão e se emociona com a novela, não consigo me concentrar no jornal e vou até a cozinha. Minhas pernas já não são tão firmes quanto antes. Abro o armário e procuro meus remédios, apertando a vista para diferenciá-los dos de minha esposa, inúmeros frascos. Sete cápsulas depois, meu filho sai pela porta da cozinha de mãos dadas com a namorada e uma mala na mão, vão casar, que bom. No caminho de volta à sala, minha filha passa vestida sobriamente, vou para uma entrevista de trabalho, diz ela. Viro à esquerda no corredor. Aquele velho quadro do vaso azul continua lá, nunca foi muito bonito, penso eu. Ando lentamente até meu quarto e procuro pelos meus chinelos, ajoelho-me no chão com dificuldade, dobro as costas que rangem e encontro o que procurava embaixo da cama. Apoio-me nela pesadamente, calço os chinelos e arrasto os pés em direção à sala, no corredor minha filha passa por mim com uma grande mochila nas costas, me dá um beijo rápido e sai. Um rapaz a espera na porta. Vão casar, que bom. Penso que ficaremos sozinhos, eu e minha esposa. Paro em frente ao espelho do corredor, observo-me com cuidado, cada ruga, os cabelos que ainda me restam, a postura curvada. Olho para minhas mãos, minha pele parece papel fino. Continuo meu caminho, chego na sala e minha esposa está imóvel, a novela acabou. Sento-me ao lado dela, está fria, está fria e dura, está morta. Sinto que ficarei sozinho. De que importa? O tempo passou rápido e vai passar rápido. Caminho, apoiado em minha bengala, até o telefone; ligo para o IML, eles dizem que logo chegarão. Vou com dificuldades até o quarto para colocar um casaco, no corredor o apoio da bengala não me é suficiente, apóio uma das mãos na parede mas acabo por bater num quadro, no velho quadro do vaso azul. Caio no chão e uma dor percorre o interior dos meus ossos, olho para cima e no mais completo silêncio está o quadro vindo de encontro à minha cabeça; sinto o baque. De que importa? O tempo passa rápido.

Minha cabeça sangra e agora tudo está mais calmo.

2 Comments

Filed under Uncategorized

Poetas (setembro de 2006)

Margarida! Margarida!

Banhou-se toda em luar…

Lembro-me bem. A ponte era comprida,

E o pranto lento deslizando em fio…

E, dentro do luar,

Pensamentos de vida formulados,

Toda a recordação do que ficava atrás!

E na verde ironia ondulosa do espelho

Plantei, com a minha mão ingênua e mansa,

            A voz do mar.

Um olhar breve – e vão

Que defende a entrada de seu fojo.

Hora de dormir – dormir!

Os olhos a fitar a noite infinda.

Eu quero ver outra luz

Na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Graças ao seu préstimo avisto

Tão simples, tão certa, tão fácil:

Criança germinando dentro da noite.

Olhar o mundo, o espaço iluminado,

Inutilmente na luz perpendicular.

Depois de ouvir-lhe o segredo

Hão de morrer as cantigas;

E é ridículo das amor a alguém que amanhã estará surdo.

Pois nem o vento, nada te abandona.

Que dor de coração me dava

Cio de amor que me impede, que destrói e fecunda!

Ferido de mortal beleza.

– É meu braço que treme ou teu braço que treme?

Do outro lado tem outras vidas vivendo de minha vida

Num ímpeto de secreta fraternidade.

Meu amor me ensinou a ser simples

E sobre o mar me atirou.

Sinto bater em cadência

Este lameto

Bolhas e pingos verdes;

É namorada do mar.

Por isso temos braços longos para os adeuses

E vimos que entre nós nascia um sul

De asas de nuvem. Um rio

Confiante e confidente.

Não faz mal que amanheça devagar,

Assim prenhe de rosas, te quero,

Somos um só. Nela eu vivo e ela em mim,

De quase nada:

Gesto de desespero e despedida,

Banhado em velhos sais e maresias,

O sal e a palha da ternura humana.

Dá-me forças, Coração de Nuvem,

Sua vida fechada

É o meu passado.

Palavras… Palavras… Palavras…

Há mulheres que dizem:

O poeta mal fala e as pessoas já abrem a boca em fastio

            – A farsa

Do que em nós faz o amor, em vão tecemos

De uma praia a outra

E isto já basta… O sol brilhará,

Ante o que se deseja e se pressente.

A pele de um animal separada do corpo:

A mulher magra

Dançou: cruzou com uma bala…

Também é feita de deixar de ser,

Conhecerás a esperança.

Com um embornal de pinceizinhos e uma paleta de cores

De sóis e luas.

Mas dentro de mim,

Para além da estrela remota

Teu coração é um labirinto de palavras

Seus olhos também no horizonte do mar e da montanha

Se levantaram cantando

Como aqueles que amam.

E de manhã, na hora do encontro

Que te aguarda sob os galhos.

A manhã, toldo de um tecido aéreo

Ficou sendo um brinquedo de criança

A roçar a porta do sono

Numa escala de formiga, que as montanhas atraem.

Jogou-se contra um mar de sofrimentos

Sua grandeza inconsciente;

Seu corpo feito de nuvens

Estando

Não existe

Nuvens brancas

Azuladas nas samambaias.

E o que respirávamos se chamava manhã

Que é meta de claridade

Nos dois olhos

A abrir-se dentro da sombra;

Já podemos ir embora!

1 Comment

Filed under Alheios

Geografia amorosa (ready-made) (outubro de 2006)

No cruzamento da Condessa de S. Joaquim com a Conde de S. Joaquim, pode-se ir para o Paraíso ou a Liberdade.

Leave a comment

Filed under Poemas

(Sem título) (20.06.2005)

Peso

do corpo

na cadeira:

morto;

Olhos,

só marcas

na madeira:

farsa;

Dentro,

de fato,

verdadeira:

falso.

2 Comments

Filed under Poemas

J. Cortázar: “O Jogo da Amarelinha” (I)

“( … ) já não há diálogo ou encontro com o leitor, há somente esperança de um certo diálogo com um certo e remoto leitor.”

“( … ) as ordens estéticas são mais um espelho do que uma passagem para a ansiedade metafísica.”

“Só existe uma beleza que ainda me pode conceder este acesso [a uma realidade satisfatória]: aquela que é um fim e não um meio; e que o é porque seu criador idenficou em si mesmo o seu sentido da condição humana com o seu sentido da condição de artista.”

(Morelliana)

Leave a comment

Filed under Alheios

( ) (20.12.2005)

No tempo que separa o relâmpago que pisca com seu olho fractal

da propagação mecânica do estrondo reverberante do trovão,

faz-se um filho, uma porta bate,

nuvens dissipam-se pirotécnicas no céu da China

e uma moça prendada arruma meticulosamente uma cama num quarto de motel.

Depois da luz e antes do som,

um filhote de gato agita frenético as patas

caçando o vulto invisível de uma presença passada,

a onda gigante percorre quilômetros de terra humana

desenraizando as pernas finas do garoto tailandês que trabalha

e as pernas loiras do turista alemão que tem muito azar.

Entre as frestas iluminadas e a janela que estremece,

uma tese gera uma antítese gera uma síntese,

um camelo se faz um leão se faz uma criança,

o gato não é vivo nem morto

e uma maçã descreve uma trajetória vertical da cabeça de um físico até a copa de uma árvore.

Nesse interstício, na ambigüidade dessa suspensão,

cabe o declínio de impérios

a construção de montanhas-russas

o elogio à loucura

a manifestação de rua

a ida ao cabelereiro

a carne comida crua,

cabe a morte da mãe

e o vôo em parábola de uma ave-de-rapina;

cabe a fabricação de um serrote,

a extinção de uma espécie,

a ressureição de Cristo

e a ascensão do Facismo

na ambigüidade desse interstício.

Entre a descarga elétrica e o susto,

conta-se os segundos e divide-se por três

para que enfim venha o sol,

dá-se um ovo a Santa Clara

para calcular probabilisticamente a eficácia da ação superior;

a água do filtro acaba, a moringa transpira, a represa seca

e o governo anuncia novas medidas  para o semi-árido

o meio-ambiente

o Estado-Nação.

É fácil chorar entre o raio

e o anúncio do fim da suspensão;

e, no tempo que serapa o relâmpago que pisca com seu olho fractal

da propagação mecânica do estrondo reverberante do trovão,

a menina, entre A e B,

na expectativa pela chegada de B

(onde B é um índice no nome complexo “a chegada de B”),

pensa nos monstros do armário

em Tutu-Marambá

no homem-do-saco

no velório da avó

num relógio quebrado

na Terra do Nunca

num sapo que coaxa para sempre

e se esconde debaixo das cobertas

e vibra.

Leave a comment

Filed under Poemas

Carta nunca enviada (02.10.2005)

Lúcio, meu cais, me desculpe desde já. Nunca te disse como é difícil pra mim escrever pra você, mas acho que você sabe disso, eu nunca consegui esconder. É por isso que as cartas só vêm de vez em quando, menos do que deveriam; e eu sei disso, sei disso e sei o quanto você sente e como ficaria menos triste se eu escrevesse mais, todos os dias, todas as semanas ou pelo menos todo mês, pelo menos… e eu quero, Lúcio, eu também seria menos triste se eu te escrevesse mais, mas não posso, não consigo, é sempre muito difícil.

Você sabe que nada nunca foi fácil. Ainda mais agora, com a distância – mas mesmo sem ela, ainda que no mesmo quarto, você me conhece e não sei se me compreende, mas sei que gosta demais de mim, demais, e que se sacrifica por mim, se cala por mim, suporta. Eu nunca quis te magoar, Lúcio, nunca, e também nunca quis que você compreendesse, talvez por não querer te magoar, talvez por acreditar que não fosse possível que você, você com essa sua desenvoltura, você sempre tão compreensivo… me perdoa, Lúcio, se eu te magoar.

Acordar todos os dias com esse despertador que toca por causa de algum mecanismo que nunca nos perguntamos qual é, colocar os pés no chão frio e começar a complicada e desajeitada tarefa de preparar-se para o dia nunca foi fácil, sempre houve uma sensação sufocante de que todas essas coisas que os outros fazem com a maior naturalidade são, na verdade, insuportavelmente postiças, adendos que sufocam. Desculpe, Lúcio, eu sei que você tem paciência, eu preciso ao menos tentar.

Não é natural tirar o pó de café do pote com aquela colherzinha cônica, despejá-lo no filtro, ferver a água: é cotidiano e sempre recomeça, e deveria ser um gesto mecânico. Era pra ser simples, mas implica tanta coisa, Lúcio! E todo dia é difícil, é como um peso, me gera quase uma repulsa, mas eu não posso abdicar do café, não posso desistir dele por causa desse peso; e então é uma luta diária, ver a água passando pelo filtro, mais e mais até que acabe, e então colocar o café na xícara e esperar que esfrie um pouco, assoprá-lo – assoprá-lo, Lúcio! – para que esfrie mais rápido e então bebê-lo em lentos goles, suportá-lo esôfago abaixo, suportar sua presença no estômago e lavar a xícara para que não fique pra depois: para que não fique pra depois, Lúcio. É sempre o mais difícil.

Eu não sei se era pra ser assim, não sei se é assim pra você; acho que não, mas tomar banho todo dia pensando no de ontem e no de amanhã, ensaboar a nuca, os ombos, os seios sempre na mesma ordem, deixar o xampu aberto entre a primeira e a segunda operação, enxagüar bem, isso tudo faz um sentido insuportável e como que se acumula. O mesmo, o mesmo. E funciona, é claro que funciona, mas pra mim isso quer dizer muito pouco e me custa enxugar entre os dedos dos pés, secar o cabelo, escovar os dentes fazendo movimentos circulares num ângulo de quarenta e cinco graus para retirar bem a placa. Depois é como se eu tivesse penas entre os dedos, ar demais entre os fios do cabelo e algo exposto demais entre a gengiva e os dentes, não sei como te explicar, mas me custa. Me vestir, fazer a maquiagem, me ver bonita no espelho e girar a chave na fechadura. Essa roupa que me roça a pele, essa gosma que me cobre os cílios, o reflexo que parece dar certo e a chave que serve na fechadura, a planta e o capacho, o elevador sempre cheio de vizinhos. Todo dia, Lúcio. Você tem que compreender.

Hoje estava apenas o vizinho do 137 no elevador. Ele veste o cinto como se fosse víscera, aperta o botão do S2 como se estivesse escríto na Bíblia que apertar o S2 te leva ao segundo subsolo e conversa comigo como se o fato de morarmos no mesmo prédio não fosse o único motivo do nosso contato ocasional. Eu não entendo. Ele fala por treze andares sobre o clima e a corrupção como se não estivéssemos descendo um poço dentro de uma caixa de metal, e então eu desço e a cada passo me lembro de como concordei com ele, de como cooperei, de como fiz que sim com a cabeça. Dá vontade de chorar, Lúcio, eu não entendo, eu não entendo e contraio a testa e mordo os lábios por pura impossibilidade de fazer qualquer outra coisa, como por exemplo chorar a pé no caminho pro trabalho. Viriam pessoas; elas viriam como se fosse normal acudir alguém que chora sozinho na rua, como se não fosse um pouco de convenção e um pouco de curiosidade. Ou então não viriam.

Não entendo como um computador funciona. Não entendo. Não sei como as pessoas comem com as mesmas mãos que usam para digitar sem sofrerem como eu sofro, sem terem essa sensação de que há algo de grotesco se configurando em suas mãos, os múltiplos usos, a naturalidade do transitar entre uma e outra atividade, o descomplexo. Eu me sinto tão inadequada, Lúcio. É um desencaixe, não compreendo como as pessoas podem ter tanta convicção. Elas conversam como se falar fosse simples, fosse dado; escrevem como se não houvesse filtros, como se eles pouco importassem, como se as mãos fossem extensão do cérebro, como se não houvesse dúvidas de que isso tudo é assim e assim deve ser. Elas conversam, Lúcio, se abraçam, respondem como se estivessem programadas. Eu nunca te abracei direito. Eu não sei abraçar, é difícil. É um desequilíbrio de zinco que dá numa depressão ou é um estado depressivo que gera um desequilíbrio de zinco? Eu não sei abraçar, Lúcio. Espero não te magoar.

Lúcio, me matar seria fácil demais, não seria uma solução. Me matar não traria resposta nenhuma e eu nem sei se o que eu quero são respostas, eu nem sei se eu quero alguma coisa – tudo traz consigo esse ranço de normalidade que não se explica, essa forma corrente de funcionamento. Tudo é difícil, Lúcio, e me matar seria difícil por ser tão fácil, tão próximo, tão factível, um deixar-se cair da janela. Optar pelo fácil seria renunciar a muita coisa e isso seria isuportavelmente difícil.

É como uma trepadeira que vai cobrindo a gente por dentro, agarrando-se aos órgãos, comandando o que a gente sente ao passar café, se vestir, ir pro trabalho. Olho no espelho e sei que ela está lá, a trepadeira maldita que não me deixa viver e não me deixa pular da janela. É ela quem manda, Lúcio, e é uma escolha. Não cultivá-la seria a renúncia. Ela se instala, Lúcio, e exige obediência. Ela é natural, ela é simples, ela vai mostrando que as coisas são o que são e que o mundo gira e que tudo funciona e faz sentido de um jeito um pouco estranho, mas ela dá um nó em mim e me vira o estômago sempre que eu me insiro nessa ordem, sempre que eu giro com o mundo; horrível, Lúcio, é sufocante.

É só uma imagem. Desculpe, Lúcio. Eu não quero que você sofra. Não se preocupe, não vale a pena, não há por quê.

Eu te amo tanto, Lúcio, meu cais. Mesmo com a distância, o pouco contato. Eu te amo e não posso mais fazer isso com você. É ela, a trepadeira. Me prende as mãos, não me deixa te escrever mais, eu sofro, você sofre.

Você me ama como se fosse normal, como se fosse simples, enquanto o mundo gira. Eu te amo também, tanto. Mas não posso, não suporto, a ordem das coisas, o mundo que gira. É fácil, é normal, eu não suporto, não posso fazer isso com você. Não seria verdadeiro, e eu não posso chorar no meio da rua.

Desculpe, Lúcio. Por favor, tente entender. Eu nunca entendi, sempre tive certeza e sempre duvidei da certeza. É a trepadeira, eu sempre tive esse nó. Ela exige o cultivo, eu não posso levar isso adiante, eu não posso te levar junto, nada disso é pra você.

Eu não sei se você compreende. Espero que você possa suportar. É o último sacrifício, Lúcio. O último. Não se preocupe, apenas esqueça. Não vale a pena.

Desculpe, Lúcio, desculpe, eu nunca quis te magoar.

Leave a comment

Filed under Contos

Construção (26.04.2003)

Agora está tudo silencioso.

Antes, havia algazarra e balbúrdia desesperadas; antes ainda, havia aquele burburinho comum às aglomerações humanas, independentemente do estado de espírito dos indivíduos. Um burburinho agitado – pode-se até dizer, quem sabe, alegre. Uma multidão tão heterogênea de rostos, pensamentos e histórias que resulta numa irradiação popular completamente homogênea, que não é capaz de mostrar-se feliz ou triste, boa ou ruim. Mas sempre me soou alegre e – talvez seja esta a palavra – viva. O burburinho das cidades é, acima de tudo, vivo.

E, lentamente, ao longo de algumas semanas, o burburinho foi se tornando cada vez mais baixo, cada vez mais esparso, mais ocasional, até que se transformou num silêncio atento, recheado de expectativas. Um silêncio vivo, quase palpável, quase mensurável; e as pessoas imersas neste silêncio calaram e esperaram.

Então, de súbito mas não sem ser esperada, começou uma movimentação acelerada, acompanhada dos berros agudos das sirenes e dos gritos histéricos e desesperados daqueles que presenciavam um acontecimento que era tão previsível e esperado quando absurdo e incompreensível. Um desespero abafado, um desespero de não ter como fugir à realidade; o correr para lugar nenhum.

E a balbúrdia se prolongou por dias e dias, progressivamente aumentando a desilusão e diminuindo a esperança. Então começou a se apaziguar; já não era comum o incessante bater de pés fugitivos a cada grito da sirene e até estes aconteciam cada vez separados por um período mais longo de silêncio atento e, agora, experiente; até que a freqüência do soar imparcial da sirene se tornou tão baixa que o silêncio atento se transformou em um outro tipo de silêncio.

Não havia mais a expectativa de que as sirenes tocassem, assim como também não havia esperanças de que tudo fosse como era antes. O burburinho havia se extinguido e não se ouvia nada além da vibração quente e grave que a falta de vida traz aos locais que se tornam desertos após terem sido antros da rotina humana. Tudo me parece estar tomado por uma pressão surda, morta, que parece apenas concordar com a situação e se acomodar.

O que antes era sólido e claro agora não passa de um amontoado de pó chamuscado. Grande parte das construções se pulverizaram, inclusive três dos meus vizinhos e o velho monumento no centro da praça à minha frente. Mas eu não caí.

Eu não caí e não pude impediu que os outros caíssem. Talvez eu tenha sido mais bem-construído, o material utilizado tenha sido de boa qualidade e meu projeto, perfeito. Meus alicerces firmes me manteriam impávido e minha estrutura em arcos impediria o meu colapso. Não sei.

Mas aquilo que me faz resistente é também aquilo que me torna imóvel. E agora que tudo passou e não sucumbi às explosões e rajadas de mísseis, não posso fazer nada além de observar a destruição que me cerca sem saber dizer se prefiro estar nessa situação ou se preferiria ser apenas mais uma pilha de tijolos, pó chamuscado e ferro retorcido em meio a tantas outras.

1 Comment

Filed under Contos